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terça-feira, 27 de março de 2012

Reflexões sobre a “Questão Judaica”

Livro "Sobre a Questão Judaica" Fonte: livraria-popular.blogspot.com

Valter Machado da Fonseca

Este texto de Marx representa, até certo ponto, o início da construção de um divisor de águas entre o “Idealismo” hegeliano e a construção de uma proposta que visasse dar o norte político para o enfrentamento de uma sociedade gestada ainda no ventre do Feudalismo e que vinha à luz com toda a força: a sociedade capitalista. Neste sentido, Marx se encontrava na encruzilhada para a superação das concepções filosóficas de Hegel, que apontava que tudo se explica no campo das ideias. A partir desta concepção, Hegel acabou por consagrar a universalidade e eternidade do domínio do capital, pois, suas estruturas produtivas e reprodutivas foram construídas por intermédio do racionalismo, que se sustenta, exatamente, nos pilares do idealismo.
Diferentemente de ser considerado um “Deus”, é preciso interpretar a obra marxiana com a alta dose de seriedade que ela merece. A atual crise estrutural do capital que varre a Europa e ataca frontalmente o coração do sistema reprodutivo do capital, os EUA, demonstra que a formulação de Marx conserva toda sua atualidade. É interessante verificar que Marx nunca foi tão lido como nos tempos presentes, em especial na Alemanha. Toco nestas questões, justamente para destacar que diversas correntes, dentre elas o “pós-modernismo” se cala diante da atual crise do sistema produtivo capitalista. Estão estupefatos, não têm o que dizer! Chegaram mesmo à paralisia da vontade!
Retornando à “Questão Judaica”, a década de 1800 significou um marco histórico que precisa ser interpretado com a devida seriedade. De um lado, as concepções de Hegel iriam dar as completas condições para a universalização do capital e, por outro lado, existia a possibilidade de construção de outra via, por intermédio da superação das concepções filosóficas de Hegel. E foi, exatamente, por esta última via que Marx procurou embasar seus fundamentos. Mas, a superação das concepções hegelianas exigia tirar do caminho todos os obstáculos teóricos e práticos que viessem a inviabilizá-la. Isto significa dizer que era necessária também a superação dos princípios criacionistas que se embasavam na “verdade revelada”, traços fortes da “Escolástica”, conservados ao longo dos tempos, e que tomavam o caráter de universalidade e perpetualidade. Em outras palavras, isto significa dizer que era fundamentalmente essencial a superação dos traços marcantes do novo modelo de organização social que estava em gestação, ou seja, fazia-se urgente buscar a superação dos pilares que embasavam a construção do Estado, ou seja, a religião e a propriedade privada. É exatamente por isso que este texto tem sua importância para a compreensão do pensamento e das ideias de Marx. Apesar de não ser um texto fechado, acabado, ele traz reflexões fundamentais no sentido de superação dos princípios liberais que embasam a construção do Estado capitalista.
A formulação do próprio Marx de que “toda nova organização social traz em suas entranhas, elementos das velhas, das que a antecederam” é extremamente relevante para que entendamos “A Questão Judaica”. Aqueles anos [1840 – 1848] marcaram um período histórico de disputas efervescentes de diferentes concepções filosóficas, de projetos de mundo, de homem e de natureza. Mas, para que Marx conseguisse seu intento, a superação das concepções hegelianas, muitas vezes ele necessitava apoiar-se, contraditoriamente, em elementos e aspectos contidos na própria filosofia de Hegel. Diante disso, os diálogos com Bruno Bauer e, posteriormente com Feurbach, foram fundamentais para que Marx edificasse seu sistema de ideias e princípios, os quais iriam ficar mais evidentes no “Manifesto do Partido Comunista” escrito a quatro mãos com Engels em 1848.
As bases filosóficas contidas na “Questão Judaica”
O diálogo com Bruno Bauer, base principal desse texto, coloca para Marx o problema central de seu estudo rumo à superação do “Idealismo” de Hegel. Este problema é colocado de forma evidente e clara, já no início do texto: o problema da emancipação humana. Esta questão central é colocada desta forma no início da obra: “Os judeus alemães almejam a emancipação. Que emancipação almejam? A emancipação cidadã, a emancipação política.” (MARX, 2010, p.33). Aí está colocado o problema central: a necessidade de elucidar e problematizar os termos “emancipação”, o conceito de “cidadania” e as bases “políticas” para esta emancipação.
Mas, como discutir estas concepções sem analisar os princípios que regem a política? Como discutir estas concepções sem estudar os fundamentos sob os quais se construiu o conceito de cidadania. Por isso, Marx necessitava ainda discutir os pilares que sustentam a religião, o Estado e a propriedade privada. A partir dessa necessidade premente, Marx problematiza, levanta contradições, dualidades a partir da construção das concepções de Bauer acerca do judaísmo, polarizando com o cristianismo, justamente por este já ter assumido seu caráter mais universal e já estar presente nas bases da construção do Estado. Na verdade, o “Idealismo” de Hegel, apesar de se constituir numa importante âncora para a superação dos dogmas da Igreja [vide os princípios do racionalismo], não conseguiu superar o problema da crença individual que tinha seus pilares fincados nas concepções religiosas. Ele acaba justificando esta particularidade do homem enquanto indivíduo pelo seu próprio sistema de que tudo se constrói no campo das ideias.
Observem que Marx não exclui a religião do seu campo de formulação prática. Na verdade, ele trabalha suas concepções dentro de dois campos distintos: o campo da realidade, na qual está presente o estado e sua ideologia e o campo da perspectiva da construção de outro modelo de organização [ou desorganização] social que seria a edificação de um paradigma sem a presença do Estado e suas nuances, perspectiva que iria marcar todos os seus textos subsequentes. Isto fica evidenciado em:
A emancipação política de fato representa um grande progresso; não chega a ser a forma da emancipação humana em geral, mas constitui a forma definitiva da emancipação humana dentro da ordem mundial vigente até aqui. Que fique caro: estamos falando aqui de emancipação real, de emancipação prática. O homem se emancipa politicamente da religião, banindo-a do direito público para o direito privado. Ela não é mais o espírito do Estado, no qual o homem – ainda que de modo limitado, sob formas bem particulares e dentro de uma esfera específica – se comporta como ente genérico em comunidade com outros homens; ela passou da sociedade burguesa, a esfera do egoísmo, do bellum omnium contra omnes [da guerra de todos contra todos]. Ela não é mais a essência da comunidade, mas a essência da diferença. Ela se tornou expressão da separação entre o homem e sua comunidade, entre si mesmo e os demais homens – como era originalmente. Ela já não passa de uma profissão abstrata da perversidade particular, do capricho privado, da arbitrariedade. A interminável fragmentação da religião, p. ex., na América do Norte, confere-lhe já exteriormente a forma de uma questão puramente individual. Ela foi desbancada por meio dos interesses privados e degredada da comunidade como comunidade. Todavia, não tenhamos ilusões quanto ao limite da emancipação política. A cisão do homem em público e privado, o deslocamento da religião do Estado para a sociedade burguesa, não constitui um estágio, e sim a realização plena da emancipação política, a qual, portanto, não anula a religiosidade real do homem. [MARX, 2010, p.41-42, passim] [Grifos do original].

No fragmento textual de Marx [2010] podemos verificar que ele estabelece os limites do Estado, enquanto estrutura social isenta da religião, ele evidencia a transferência da religião do Estado para toda a sociedade burguesa. Isto significa dizer que, mesmo o Estado se proclamando laico, ele se conserva enquanto precursor de tais prerrogativas, pois, o homem enquanto indivíduo, ainda conserva a essência da crença religiosa. Na verdade, neste fragmento textual, Marx estabelece os limites da emancipação política demonstrando, concomitantemente a complexidade para a superação dos entraves oriundos das concepções religiosas para a efetivação plena da emancipação política do homem, o que não pode se dar na presença do Estado e nem da sociedade burguesa, fundada sob os princípios liberais.
Na verdade, durante todo o transcorrer do texto, as formulações de Bauer são de uma profunda riqueza para que Marx vá ao sentido de construir as bases teórico/práticas para a superação das concepções idealistas de Hegel. Estabelecendo e realçando as contradições oriundas das formulações de Bauer, ele consegue fazer a ponte necessária para construir sua crítica ao Estado burguês enquanto instrumento de dominação ideológica, a serviço dos princípios liberais e, ao mesmo tempo, aponta para a necessidade vital de superação do Estado enquanto instrumento de dominação burguesa, das concepções de cidadania derivadas deste Estado e, finalmente, ele avança apontando para a necessidade de superação dos princípios sob os quais se edifica a propriedade privada, base material e ideológica imprescindível para a edificação e manutenção da sociedade capitalista. É lógico que este texto aponta para a necessidade de discussão de outros elementos como, por exemplo, “estranhamento” e “alienação”. Porém convém deixar estas discussões para os textos onde estas abordagens possuam maior fluidez.
Compreender Marx por Marx  
A leitura da “Questão Judaica” traz diferentes abordagens e reflexões. Cada texto, cada produção literária é fruto de seu tempo, é fruto de um contexto histórico, político, econômico e social. Assim, a leitura das obras marxianas demanda a compreensão do materialismo dialético.  Isto significa dizer que ninguém é melhor para explicar Marx que o próprio Marx. É lógico que toda obra possui sua incompletude espaço-temporal, o que vai demandar novas leituras e novas interpretações. Interpretar Marx sob a luz do materialismo histórico-dialético demanda, sobretudo, reconstruir a visão de totalidade, de reconstituição dos diversos contextos históricos. Fugir disso, procurar as linhas de menor resistência, “não chamar as coisas pelo seu nome” é, no mínimo escamotear as discussões e os debates, é distorcer perversamente a obra. Portanto, longe de ser um “Deus”, Marx deve ser estudado, analisado, e discutido dentro da visão de totalidade histórica e de totalidade da obra, sob pena de se cometer uma falsificação banal e distorcer os fatos históricos. Vou parando por aqui! Espero que estas contribuições venham contribuir, de fato, para o enriquecimento de nosso debate e nosso crescimento coletivo e individual.
Até o próximo texto!
Valter. [Uberaba, 27 de março de 2012].

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